Por
Hildeberto Barbosa Filho
Todo poeta possui uma paisagem.
Paisagens também se consolidam como nutrientes temáticos dos poemas, seres de
palavras e de sentimentos que intentam expressar a realidade em toda sua poliédrica
manifestação.
Capa: Lorena Elias |
Baudelaire cultiva sua paisagem
poética vagando pelas ruas dispersas de Paris; Fernando Pessoa se abeira no
cais do rio Tejo para observar Lisboa pelo foco das metáforas; Jorge Luís
Borges cadencia o fervor de Buenos Aires nas praças e avenidas de seus versos
inimitáveis; Carlos Drummond de Andrade, no iluminado relâmpago de um poema,
emoldura para sempre as férreas calçadas de Itabira, e Augusto dos Anjos, na
solidão de seus passos taciturnos, caminha, ao ritmo sombrio e macabro, pelas
pontes históricas de Recife ou pelos canaviais noctâmbulos do velho engenho Pau
d`Arco.
Cada poeta, com a sua voz. Cada voz,
com o seu canto. Cada canto, com o timbre particular da verdade e da beleza de
uma poesia germinal que convoca a paisagem geográfica de suas experiências
vividas para o mágico retábulo do poema.
É dentro desse viés de compreensão
que começo a assimilar os versos livres de um poeta como Jorge Elias Neto
(1964), capixaba, na coletânea intitulada “Cabotagem”, em edição da Mondrongo,
Ilhéus-Itabuna, 2016, sob regência do também poeta Gustavo Felicíssimo. (Que se pode adquirir AQUI ).
Digo “coletânea”, se penso cada
poema no território isolado de sua autonomia semântica, lido um a um, assim por
partes, com direito às paradas táticas para o exercício da reflexão e para a
fruição individual do prazer estético.
Considerando, não obstante, o
diálogo interno que se opera de texto a texto, e, aqui, tomados pelo critério
simbólico da paisagem, nada me impede de afirmar que estou diante um poema
único. Um “macrotexto”, para me valer da expressão de Maria Corti, centrado na
captura do lugar, o lugar físico, topográfico, mas também o lugar memorável das
“imagens amadas”, como diria Gaston Bachelard, disposto em mosaicos especiais
que se inscrevem no plano real da recordação, portanto, na substância lírica,
mas, sobretudo, na armação configurativa das virtualidades verbais do poema.
Este “Cabotagem” é uma viagem por
dentro da paisagem da ilha de Vitória, movida pela corrente emocional e
evocativa do eu lírico que, firmado na cadência de seus versos, percorre, texto
a texto, os locais da cidade enquanto motivos poéticos, e desse reencontro, que
se materializa, a princípio, no terreno concreto e objetivo, brota, na limpidez
da linguagem, as imagens estéticas que fazem da paisagem uma experiência
subjetiva, particular, única, intransferível, que é exatamente a experiência do
poeta, daquele olhar só seu, a criar e recriar, já nos arcabouços da
sensibilidade e da imaginação, uma Vitória toda sua, enfim, uma cidade que
existe a partir da observação, mas que é mapeada sobretudo por aquela “fantasia
ditatorial”, ou seja, fantasia criadora, a que se refere Rimbaud.
Ponta Formosa, ladeira do Sacre Coeuer, a
Terceira Ponte, o Convento da Penha, o Manguezal, o Penedo de 136 metros de altura,
o Cais do Hidroavião, a Capela do Carmo, o Britz Bar, o Horto, a Catedral, o
Iate Clube, o Triângulo das Bermudas, o Status Motel, o Cine São Luís e o
Aterro são, entre outros locais, acidentes e monumentos, os elementos que
compõem a tessitura dos poemas, numa espécie de roteiro sentimental que, pela
natureza mesma de sua força poética, transcende os limites convencionais dos
roteiros históricos e turísticos, restritos, não raro, ao mero apelo
pragmático.
Na poesia de Jorge Elias Neto, o que
poderia ser apenas patrimônio artístico ou valor cultural para visitação,
converte-se em sutileza reflexiva, em percepção surpreendente, em qualquer
coisa de inaugural e de idiossincrático que tende a desmobilizar o olhar do
leitor, redimensionando-o para outras possibilidades de sentido. Observe-se,
por exemplo, o pequeno poema “Capela do Carmo”:
“Primeira
hóstia
entre
tantas roubadas
e um brilhante que não furtei
por
temer a Deus”.
Nesta mesma direção, dentro, no
entanto, de uma clave mais discursiva, no poema “70 metros”, vejamos alguns
versos:
“Bom
sentar aqui...
Gera
um desvio do olhar;
um
torcicolo súbito
diante
da emanação do absurdo.
....................................................................................................
Minha
mãe guardou meus cachos de anjo,
cortados,
abençoados...
Mas os anjos são lívidos
demais
para serem humanos...
......................................................................................................
(A
eternidade é uma metáfora que já não me ilude.)
......................................................................................................
Sacia-se a fome de ossos
dos
Oceanos.
......................................................................................................
Mas, por ora,
contenha
as lágrimas, leitor.
Não
se trata da vida do poeta.
Por
mais que insista,
a vida é mais irônica
que
as palavras”.
Na verdade, nesta dicção poética,
conta mais pensar acerca da paisagem, tentando captar seus meandros ocultos e
suas regiões inomináveis, mais que o descrevê-la sob parâmetros de uma linearidade
fotográfica. À paisagem se vincula, portanto, a certa temperatura emocional,
aderindo, por sua vez, aos comandos invisíveis da memória e da imaginação,
evidentemente para que o que preexiste enquanto matéria dispersa, no âmbito do
estado poético, possa se transmutar em operação expressiva, em organização
especial da linguagem, isto é, no poema.
Com “Cabotagem”, Jorge Elias Neto
continua maturando seu ofício poético e acrescenta mais um título a sua obra,
depois de “Verdes versos (2007), “Rascunhos do absurdo” (2010), “Os ossos da
baleia” (2013) e “Glacial” (2014).
Hildeberto Barbosa Filho
É poeta, crítico
literário e cronista, membro da Academia Paraibana de Letras, professor
universitário e autor de diversos livros, entre eles “Nem morrer é remédio”
(Poesia) e “Vou por aí” (Crônicas)
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