terça-feira, 31 de janeiro de 2017

ÁLLEX LEILLA NO RASCUNHO

"Nosso melhor amigo e nosso pior inimigo é o mundo, pois a escrita se faz dessa tensão de estar e não estar ao mesmo tempo. Nos ausentamos da pauta para nos presentificarmos na página."

A entrevista, na íntegra, da Állex Leilla (autora de “Não se vai sozinho ao paraíso”, Mondrongo 2016) no Rascunho. CLIQUE AQUI PARA LER
.
O livro pode ser adquirido AQUI


terça-feira, 17 de janeiro de 2017

ANO NOVO


Por Vicente Formigli

Não há nada mais decepcionante do que você acordar no primeiro dia do ano novo e ver que tudo, absolutamente tudo, está exatamente igual ao dia (ao ano) anterior. Nosso saudoso mestre, o professor e poeta Dorival de Freitas, numa de suas aulas, cita um tal filósofo - não me recordo mais o nome - que passa em vigília a madrugada do Ano Novo em busca de notar algum excêntrico ou fantástico evento que delineasse fenomenicamente essa demarcação temporal, mas qual não foi sua decepção ao notar que realmente nada acontece.
            A existência de demarcações cronológicas que marcam pontos festivos e comemorativos a que se atrela as atividades da vida civil é inerente à própria organização social humana e, como tal, existe desde sempre. Nas antigas civilizações, como as dos mesopotâmios, egípcios e chineses, acontecimentos naturais como os solstícios e o início e o fim das estações do ano, delimitavam essas marcações cronológicas. Para esses povos, usualmente, as datas relacionadas com a semeadura e as colheitas assinalava o início e o final de um determinado período cronológico, que poderiam ser identificados com o “ano novo”, correspondendo aos períodos de rituais propiciatórios ou de agradecimento às divindades se as colheitas tivessem sido proveitosas ou não. 
            Entre os gregos e romanos, aos quais estamos mais “organicamente” ligados, o ano igualmente era organizado em torno de datas e acontecimentos comemorativos, marcando, assim, o início, o desenrolar e o final de cada ciclo temporal. Com efeito, Hesíodo, no insigne “As obras e os dias”, explicita toda a divisão do trabalho campestre de acordo com as balizas cronológicas ditadas pelos “dias”, às quais “as obras” devem se orientar para fazer frutificar a terra, sob as bênçãos dos deuses e do trabalho braçal do agricultor:

          “Assim que as Pleiades, de Atlante filhas
           Nascerem, a colheita dá princípio,
           E lavra, logo que elas se puserem.
           Quarenta dias e quarenta noites
           Esta constelação está oculta,
           Mas revolvido o ano, reaparece,
           Quando se estão as foices afiando.
           Tal é a lei dos campos para aqueles,
           Que perto do agitado mar habitam
           E para os que vivem nos selvosos vales.”

            A bucólica descrição da vida pastoril contida nas “Geórgicas”, de Virgílio, por sua vez, fulcra-se, toda ela, nas diversas estações percorridas, ao longo do ano, pelo sol, pela Lua e pelas estrelas: “Fanais do etéreo espaço, que pelos céus guiais o ano a passo e passo” (I, 6-7).
            Sob o poder e a influência espiritual da Igreja Católica, na Idade Média, o ano passou a ser divido sob a égide da Liturgia, sendo fixadas diversas etapas cronológicas, como o Advento, o Natal, a Quaresma, a Semana Santa, as festas dos santos, etc, ao lado da organização temporal da vida civil, com o calendário gregoriano. Diversos outros eventos ou celebrações, com isso, se organizavam de acordo com essas referências temporais, como o Carnaval – “despedida da carne”, na véspera do primeiro dia da Quaresma ou a comemoração do ano novo.
            O conceito de “ano novo”, assim, sempre esteve ligado à divisão do ano e também às atividades sociais relacionadas com datas especificas. Conquanto se comemore o fim e o início do ano civil desde a antiga Roma, evidentemente as características de tal comemoração variou muito no tempo. Hodiernamente, somos herdeiros da celebração de ano novo em sua vertente francesa. Originalmente, a palavra “reveillon” significava qualquer tipo de “refeição festiva” feita durante a noite, mas que entre nós tomou esse sentido bem característico.
            A celebração de uma nova etapa temporal que se inicia, com seu caráter de renovação ou recomeço, mas, ao mesmo tempo, em que se avança mais e mais na História, parece que se explica sob o amalgama de uma dupla tradição cultural. Na Antiguidade havia uma concepção cíclica do Tempo e a História, concepção essa que foi nos legada sob a forma do mito do Eterno Retorno. Ao mesmo tempo, porém, com o advento do Cristianismo, principalmente após o conceito agostiniano de Tempo, passou a vigorar no Ocidente um conceito linear, tanto da História quanto do Tempo.
            Procurando escapar dos espinhosos percalços nas relações entre Cronologia, Tempo e História, podemos notar que as sociedades ocidentais, de modo geral, e as pessoas, de modo particular, tendem a essa dupla caracterização: a objetividade da Cronologia e da História e o caráter subjetivo do Tempo.
            Pois, simultaneamente, se avançamos na História, ano após ano, por outro lado, do ponto de vista subjetivo, o caráter cíclico do Tempo nos afigura pela repetição, ad infinitum,  dessas mesmas estações temporais. Ao schopenhaueriano pessimismo de um Machado de Assis, por exemplo, no seu romance “Ressurreição”, em que o personagem ironiza as pessoas que comemoram o ano novo sem reparar que não passa de um ano a menos rumo ao túmulo, as pessoas tendem a ter essa nova esperança. Nada há mais confortador do que saber que poderemos sempre repetir o ano, passando novamente pelos mesmos dias e pelos mesmos meses, numa sensação que estarmos tendo uma nova chance de nos concertarmos, de termos mais e melhores oportunidades, de termos outras alternativas...
            Por fim, e evidentemente, a questão aqui ventilada, a da mudança, não se deve prender a alguma correlação objetiva com esses marcos cronológicos, que, para todos os efeitos, são meras convenções. Atitudes tais como mudanças de hábitos – parar de fumar, começar um exercício físico, mudar de emprego – dependem unicamente de um esforço individual. O clima psicológico que certas datas ou comemorações podem inspirar no mais das vezes devem corresponder a um esforço individual que pode ser realizado independentemente de datas ou épocas.
            Assim, mais do que ter alguma esperança de mudança objetiva pelo simples fato de se vencer marcos cronológicos, a mudança que devemos procurar é em nós mesmos, conforme o sapiental bordão: se queres mudar o mundo, comece mudando a si mesmo.


Vicente Formigli

é licenciado em Filosofia e especialista em Psicopedagogia. Seu campo de interesse se estende pelos temas filosóficos propriamente ditos, no campo da Fenomenologia, da Epistemologia e da História da Filosofia, além de temas de Cultura e Ideologia e suas relações com a Educação, a Literatura e o Cinema

sábado, 14 de janeiro de 2017

O LIVRO DAS PALAVRAS MAL DITAS

Por Marcus Vinícius Rodrigues


Ao abrir ao acaso o livro de estreia de Carollini Assis, o leitor poderá imaginar, desavisado, que se trata talvez de um livro de haicais pela exiguidade dos poemas. Poucas palavras, versos curtos. Há mesmo momentos de se ter vontade de verificar a métrica para ter certeza. Não é o caso. Não é nem poderia ser. Os poemas de Carollini não poderiam jamais ser enquadrados em alguma forma fixa da tradição. Sua potência lírica é feita de brilhos súbitos, fachos de luz que iluminam uma outra potência, o erotismo feminino. Não aquele erotismo a que estamos acostumados: a mulher vista e desejada. Esta é uma mulher que passeia e exerce seus desejos de maneira tão absoluta que produz uma sensualidade não de nicho, mas universal, percebível por qualquer um. São poemas que dizem de todos nós.
O livro é feito de muitas pequenas cintilações, corpos, dores, gozos, lutas... O leitor pode se fixar em um poema e, como quem observa por uma fresta, deparar-se com todo um mundo. E são vários: há narrativas inteiras em apenas quatro versos; há sentimentos expressos em uma palavra que dizem toda a condição da mulher neste planeta, um jogo que oscila entre o explícito de palavras que poderiam ser vistas como malditas e o implícito das palavras não ditas. Jogo intelectual, jogo sensorial. Carollini mostra e esconde, oculta e revela, e essa é sua verdadeira sensualidade, uma luz estroboscópica que forma, no final, como uma tela impressionista, um quadro inteiro, o indivíduo completo. Essa é sua sedução. 
(N.E) Você pode adquirir o livro AQUI


Marcus Vinícius Rodrigues

É escritor com diversos livros publicados, entre os quais se destacam Arquivos de um corpo em viagem (Mondrongo, 2015. Poesia) e  A eternidade da maçã (7 Letras, 2016. Prêmio Nacional Academia de Letras da Bahia)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

CABOTAGEM POÉTICA

Por Hildeberto Barbosa Filho
           
            Todo poeta possui uma paisagem. Paisagens também se consolidam como nutrientes temáticos dos poemas, seres de palavras e de sentimentos que intentam expressar a realidade em toda sua poliédrica manifestação.
Capa: Lorena Elias
            Baudelaire cultiva sua paisagem poética vagando pelas ruas dispersas de Paris; Fernando Pessoa se abeira no cais do rio Tejo para observar Lisboa pelo foco das metáforas; Jorge Luís Borges cadencia o fervor de Buenos Aires nas praças e avenidas de seus versos inimitáveis; Carlos Drummond de Andrade, no iluminado relâmpago de um poema, emoldura para sempre as férreas calçadas de Itabira, e Augusto dos Anjos, na solidão de seus passos taciturnos, caminha, ao ritmo sombrio e macabro, pelas pontes históricas de Recife ou pelos canaviais noctâmbulos do velho engenho Pau d`Arco.
            Cada poeta, com a sua voz. Cada voz, com o seu canto. Cada canto, com o timbre particular da verdade e da beleza de uma poesia germinal que convoca a paisagem geográfica de suas experiências vividas para o mágico retábulo do poema.
            É dentro desse viés de compreensão que começo a assimilar os versos livres de um poeta como Jorge Elias Neto (1964), capixaba, na coletânea intitulada “Cabotagem”, em edição da Mondrongo, Ilhéus-Itabuna, 2016, sob regência do também poeta Gustavo Felicíssimo. (Que se pode adquirir AQUI ).
            Digo “coletânea”, se penso cada poema no território isolado de sua autonomia semântica, lido um a um, assim por partes, com direito às paradas táticas para o exercício da reflexão e para a fruição individual do prazer estético.
            Considerando, não obstante, o diálogo interno que se opera de texto a texto, e, aqui, tomados pelo critério simbólico da paisagem, nada me impede de afirmar que estou diante um poema único. Um “macrotexto”, para me valer da expressão de Maria Corti, centrado na captura do lugar, o lugar físico, topográfico, mas também o lugar memorável das “imagens amadas”, como diria Gaston Bachelard, disposto em mosaicos especiais que se inscrevem no plano real da recordação, portanto, na substância lírica, mas, sobretudo, na armação configurativa das virtualidades verbais do poema.
            Este “Cabotagem” é uma viagem por dentro da paisagem da ilha de Vitória, movida pela corrente emocional e evocativa do eu lírico que, firmado na cadência de seus versos, percorre, texto a texto, os locais da cidade enquanto motivos poéticos, e desse reencontro, que se materializa, a princípio, no terreno concreto e objetivo, brota, na limpidez da linguagem, as imagens estéticas que fazem da paisagem uma experiência subjetiva, particular, única, intransferível, que é exatamente a experiência do poeta, daquele olhar só seu, a criar e recriar, já nos arcabouços da sensibilidade e da imaginação, uma Vitória toda sua, enfim, uma cidade que existe a partir da observação, mas que é mapeada sobretudo por aquela “fantasia ditatorial”, ou seja, fantasia criadora, a que se refere Rimbaud.
             Ponta Formosa, ladeira do Sacre Coeuer, a Terceira Ponte, o Convento da Penha, o Manguezal, o Penedo de 136 metros de altura, o Cais do Hidroavião, a Capela do Carmo, o Britz Bar, o Horto, a Catedral, o Iate Clube, o Triângulo das Bermudas, o Status Motel, o Cine São Luís e o Aterro são, entre outros locais, acidentes e monumentos, os elementos que compõem a tessitura dos poemas, numa espécie de roteiro sentimental que, pela natureza mesma de sua força poética, transcende os limites convencionais dos roteiros históricos e turísticos, restritos, não raro, ao mero apelo pragmático.
            Na poesia de Jorge Elias Neto, o que poderia ser apenas patrimônio artístico ou valor cultural para visitação, converte-se em sutileza reflexiva, em percepção surpreendente, em qualquer coisa de inaugural e de idiossincrático que tende a desmobilizar o olhar do leitor, redimensionando-o para outras possibilidades de sentido. Observe-se, por exemplo, o pequeno poema “Capela do Carmo”:

            “Primeira hóstia
            entre tantas roubadas

             e um brilhante que não furtei
            por temer a Deus”.
           
            Nesta mesma direção, dentro, no entanto, de uma clave mais discursiva, no poema “70 metros”, vejamos alguns versos:

            “Bom sentar aqui...  
            Gera um desvio do olhar;  
            um torcicolo súbito  
            diante da emanação do absurdo.
            ....................................................................................................

            Minha mãe guardou meus cachos de anjo,  
            cortados,
             abençoados...
             Mas os anjos são lívidos  
            demais para serem humanos...
            ......................................................................................................
            (A eternidade é uma metáfora que já não me ilude.)
            ......................................................................................................
             Sacia-se a fome de ossos
            dos Oceanos.
            ......................................................................................................
             Mas, por ora,  
            contenha as lágrimas, leitor.  
            Não se trata da vida do poeta.
            Por mais que insista,
             a vida é mais irônica  
            que as palavras”.
           
            Na verdade, nesta dicção poética, conta mais pensar acerca da paisagem, tentando captar seus meandros ocultos e suas regiões inomináveis, mais que o descrevê-la sob parâmetros de uma linearidade fotográfica. À paisagem se vincula, portanto, a certa temperatura emocional, aderindo, por sua vez, aos comandos invisíveis da memória e da imaginação, evidentemente para que o que preexiste enquanto matéria dispersa, no âmbito do estado poético, possa se transmutar em operação expressiva, em organização especial da linguagem, isto é, no poema.
            Com “Cabotagem”, Jorge Elias Neto continua maturando seu ofício poético e acrescenta mais um título a sua obra, depois de “Verdes versos (2007), “Rascunhos do absurdo” (2010), “Os ossos da baleia” (2013) e “Glacial” (2014). 

Hildeberto Barbosa Filho
É poeta, crítico literário e cronista, membro da Academia Paraibana de Letras, professor universitário e autor de diversos livros, entre eles “Nem morrer é remédio” (Poesia) e “Vou por aí” (Crônicas) 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

UMA AVENTURA CHAMADA MONDRONGO

Foto: Fausto Roim
Por Gustavo Felicíssimo*


O Brasil possui vasta tradição de escritores/editores, à qual passei a integrar no ano de 2011, quando resolvi encarar uma aventura chamada Mondrongo. Vinculada ao Teatro Popular de Ilhéus, em princípio, a empresa tinha como missão e mérito fomentar a literatura da região cacaueira da Bahia, lugar que viu florescer ficcionistas e poetas da envergadura de Jorge Amado, Adonias Filho e Sosígenes Costa, publicando parte significativa do melhor da sua literatura contemporânea, bem como recuperar, à medida do possível, a obra de autores ausentes.
Ainda que estivesse mergulhado em um ambiente de longa tradição literária, eu andava preocupado com a escassez de publicações de autores da minha geração. Eram jovens de muito talento. Por isso é que, percebendo esse ambiente favorável, antes mesmo de fundar a Mondrongo eu já havia organizado e publicado “Diálogos”, uma bem-sucedida antologia panorâmica da poesia contemporânea da região, que tirou ao todo 1 mil exemplares em suas duas edições, tendo reunido trabalhos de 12 poetas. Foi essa uma obra embrionária e encorajadora, tanto que a maioria dos antologiados mais tarde vieram a publicar seus livros através da editora.
É por isso que, inspirado por uma proposição de Tólstoi, tinha em mente que o mais importante no primeiro momento era desenvolver um trabalho relevante para a literatura da aldeia sul-baiana. Assim, por uma questão de identidade, publicar tais autores jamais deixará de fazer parte dos objetivos essenciais da editora. Mas agora ancorados também pelo fato de já sermos uma empresa de referência para a Bahia, uma empresa que valoriza e deseja ser importante para a literatura baiana, tendo neste pouco tempo de fundação, publicado autores de todas as regiões do estado.
Aspiração semelhante tenho por todo o Nordeste, região que me fez o que sou. Mas não é por gratidão que admiro a literatura daqui, senão pela capacidade sem igual que os nossos poetas e ficcionistas têm de ler o mundo e o homem a partir da realidade local. Entretanto, as ações da editora fora da Bahia são ainda embrionárias, embora cada vez mais frequentes.
  Não poderia jamais imaginar o sucesso da Mondrongo até aqui quando iniciei o trabalho nos fundos da minha casa, revisando e fazendo o copidesque nas madrugadas, enquanto todos dormiam. Em pouco tempo as publicações começavam a ficar conhecidas, assim como a própria marca. Até que em 2015 um dos livros publicados, “A dimensão necessária”, do poeta João Filho, venceu o importante Prêmio Alphonsus de Guimarães, da Biblioteca Nacional. A notícia correu o país, foi manchete em toda imprensa, e mesmo fora dos grandes centros editoriais, como num passe de mágica, muitos olhos estrangeiros se voltaram para nós. Passei a receber um número sem fim de originais que no momento não tive condição sequer de avaliar.
Continuei fiel aos princípios estabelecidos, publicando ótimos livros dos gêneros mais diversos. Alguns deles tão bons quanto o premiado, por isso jamais me surpreenderá se outros prêmios vierem, como quase aconteceu com “Cacau Inventado”, do Wladimir Saldanha, que foi semifinalista do Prêmio Oceanos. O que me surpreende ainda, e me causa espanto, é a imbecilidade humana, o invejoso, o sabotador. Há muito disso no meio literário. E falta a algumas pessoas – no poder público e na iniciativa privada – certo lustro moral, aquela dose de dignidade que deveria acompanhar qualquer pessoa em qualquer profissão.
No entanto permaneço aqui, travando uma luta que em muitos sentidos é por demais desigual, a começar pela falta geral de incentivo e políticas sérias e duradouras para a leitura, chegando ao canibalismo das grandes redes de livrarias que se parecem com tudo, menos com uma livraria. O resultado disso é que, com raras exceções, as casas estão ricas de aparelhos tecnológicos de última geração e pobres de livro. É por isso que continuo sem saber qual o milagre de ainda não ter cerrado as portas da empresa. E devaneio: deve ter aí a mão do Criador. E me agarro aos sonhos possíveis, a certo pragmatismo que proporciona às coisas acontecerem, ainda que vagarosamente. Faço sacrifícios. E não me desvio do caminho, embora tantos descaminhos. Tantos desencontros nessa vida, como escreveu o Vinícius. Porém, não pretendo desistir tão cedo e nem tão facilmente, pois há muito ainda por fazer, afinal, mesmo a duras penas um empenho qualquer – qualquer um que seja – só pode ser medido pela coragem e confiança no que se faz.
E o que faço é o que sou. Por isso o livro sempre fez parte da minha vida. Por isso persigo a máxima pessoana que diz: põe quanto és no mínimo que fazes. E me ponho todo. Me agarro àquela flama que insiste em brilhar nitidamente no meu horizonte, tão importante para mim quanto o farol para o marinheiro, pois como nos alerta Leonardo Boff, nada supera a grandeza, a perenidade e a sacralidade do livro.

(*) Escritor e Editor da Mondrongo

12.01.17

Assim seja a poesia!

Por Hildeberto Barbosa Filho

            “Minha vida não merece sequer uma linha.
            Por isso me socorro dos abandonos,
            dos porres, das angústias, dos preás, das galinhas”.

            Eis os versos que abrem o poema “Escrita”, da coletânea “Que assim seja” (Ilhéus-Itabuna: Mondrongo, 2016), do poeta baiano Luís Pimentel, radicado no Rio de Janeiro, numa espécie de exercício metalinguístico que vai se configurar na sequência dos outros textos.
            Vale a pena, contudo, transcrever o resto do poema, para compreendermos melhor a profissão de fé que conduz o poeta pelo universo da linguagem e pela linguagem do universo. Vejamos:

            “Ao contrário dos grandes escribas, enfim,
            não me considero nem um pouco profundo
            e reconheço que nada interessa de mim;
            só escrevo sobre o mundo”.
           
            É precisamente o mundo, com seus elementos e predicados, que fornece, ao poeta, a matéria informe e difusa da poesia. Cabe, quem sabe, ao poema assimilá-la na sua densidade e beleza, convertendo o que é substância fluida e evanescente em produto concreto, isto é, em forma verbal, em expressão estética. Não obstante, existe sempre o risco de se perder a inteireza do estado poético, pois, no mais das vezes, a poesia, como assinala Antonio Carlos Sechin, “é uma hóspede invisível”. De outra parte, complementa o ensaísta: “só percebemos que visitou, num frêmito, o corpo do texto, quando já foi embora; o vestígio de sua passagem é o poema”.
            Ora, no debruçar-se sobre o mundo, por meio da escrita poética, Luís Pimentel faz, senão de todos, porém, de muitos de seus poemas, o espaço privilegiado daquela “passagem” na qual se cristalizam os vestígios poéticos, para deslindar as coisas do mundo sob o prisma especial de um olhar que o elastece na percepção sensível e na fantasia criadora do leitor.
            O mesmo despojamento que valida uma atitude estética, imbricada, por sua vez, no fundo moral de suas ideias e de suas emoções, alarga-se no poema que dá título ao livro, todo marcado por um sentimento, não diria cético, mas colado à crosta da vida, da vida como ela é, à parte quaisquer ideais, utopias ou redenções.
           
            “Não sou de mendigar dias melhores.
            Basta o dia feito de dias que amanhecem,
            das horas que somam e se repartem
            em noites e mais noites sorrateiras.
            Assim vou remoendo o que assim seja”,

afirma o eu lírico, para concluir, mais adiante:  

            “Aprendi a juntar cacos e fiapos,
            com eles remendar tardes puídas.
            Resguardar-se dos afetos, abafar gemidos.
            Esquecer dias não vividos.
            Aprendi a não pedir outro destino”.
            O poeta, assim, não escamoteia os pequenos desencontros face ao real. Não se lamenta, nem se deixa levar, todavia, pelo travo ácido da amargura. Não há ceticismo, não há pessimismo, não há dilaceramentos na geografia semântica de seus versos. Por outro lado, não há ufanismos, não há idealizações, não há retórica. Há como que um sábio e secreto conhecimento da vida, pulsando nas vigas de cada palavra, no alicerce sólido de cada pensamento.
            A esta primeira parte, intitulada “Passageiros”, talvez numa breve alusão à fugacidade de tudo, segue-se, pelo menos no meu entender, o núcleo duro dessa poética, mais reflexiva que descritiva, enfeixado nos “Poemas secos”, em cujo corpo germinam os nutrientes mórficos e sintáticos de um lirismo telúrico, pontuado, a seu turno, por uma série de motivos rurais que o poeta denomina de “12 dilemas”.
            Aqui, o tom é mais seco, mais direto, mais contundente. O estilo se faz mais econômico. É o verbo e o substantivo que comandam o leque de operações expressivas em torno da paisagem rala, do clima inóspito e do sofrimento humano.
            As “personas” (mãe, pai e filho) traçam um percurso em meio à desolação da paisagem, num ciclo de vivências que lembra muito o destino informe e fatal das “vidas secas”, do mestre Graciliano Ramos. Vejo também alguma coisa, talvez pelo nominalismo de certos versos de ritmo iterativo, de João Cabral de Melo Neto, naquilo que ele consuma como “lição de coisas” e de “poética do menos”.
            Nada, no entanto, que impeça a força original de uma voz poética que fala por si mesma, na sua plena maturidade e realização. Uma voz poética que não foge ao desafio das palavras e que sabe recuperar, como poucos, o ritmo desmedido e cadenciado do verso.
           
            “Seco.
            O talo seco.
            O osso rasga a carne
            seca.
            Do peito seco só esguicha
            os espinhos de macambira,
            a salmoura da palma,
            o suor do mandacaru”.

            Inicia assim o eu poético sua áspera viagem, fundindo linguagem e paisagem, forma e fundo, num complexo verbal, onde uma arguta observação existencial e uma rara disposição cognitiva se associam aos ingredientes emotivos, trazendo, ao compasso quase narrativo do poema, referenciais e subjetivação, sem elidir, contudo, o primado indispensável da função poética da linguagem. Função que, de fato, faz do poema o poema, na medida em que regula e preside, em timbre dominante, o diálogo interno entre todas as outras que exige o processo de comunicação estética.
            “Fim”, a terceira e última parte, retoma, em certo sentido, o viés metapoético da primeira, explorando, no andamento dos versos, desta feita mais longos, um tom de despedida, de acabamento ou de plenitude. Plenitude formal e estilística, mas também plenitude - é provável - nos ângulos da visão de mundo. Uma visão que, lastreando as esferas ideativas de cada texto, compactua com os sinais da vida, na sua naturalidade absurda, aceitando seus desvios e traições, ao mesmo tempo em que parece não temer a morte e seus signos indecifráveis. Por isto, quero crer, a incidência de versos como estes:

            “Parto.
            Não sei se na hora certa ou programada.
             {...}
            Partir
            é perder o medo das apostas.
            {...}
            Parto
            por mim e por ti que me cedeu a vez.
            Parto com saudades do porvir
            que não verei, que não terei, sequer senti.
            Parto sem chorar, pois é assim.
            E ao partir de ti, parto por mim.
            Reparto essa hora, esse agora esse
            Fim”.



Hildeberto Barbosa Filho

É poeta, crítico literário e cronista, membro da Academia Paraibana de Letras, professor universitário e autor de diversos livros, entre eles “Nem morrer é remédio” (Poesia) e “Vou por aí” (Crônicas) 

Você pode adquirir o livro clicando AQUI