Por Hildeberto Barbosa Filho
“Minha vida não merece sequer uma linha.
Por isso me socorro dos abandonos,
dos porres, das angústias, dos preás, das galinhas”.
Eis os versos que abrem o poema “Escrita”, da coletânea
“Que assim seja” (Ilhéus-Itabuna: Mondrongo, 2016), do poeta baiano Luís
Pimentel, radicado no Rio de Janeiro, numa espécie de exercício metalinguístico
que vai se configurar na sequência dos outros textos.
Vale a pena, contudo, transcrever o resto do poema, para
compreendermos melhor a profissão de fé que conduz o poeta pelo universo da
linguagem e pela linguagem do universo. Vejamos:
“Ao contrário dos grandes escribas, enfim,
não me considero nem um pouco profundo
e reconheço que nada interessa de mim;
só escrevo sobre o mundo”.
É precisamente o mundo, com seus elementos e predicados,
que fornece, ao poeta, a matéria informe e difusa da poesia. Cabe, quem sabe,
ao poema assimilá-la na sua densidade e beleza, convertendo o que é substância
fluida e evanescente em produto concreto, isto é, em forma verbal, em expressão
estética. Não obstante, existe sempre o risco de se perder a inteireza do
estado poético, pois, no mais das vezes, a poesia, como assinala Antonio Carlos
Sechin, “é uma hóspede invisível”. De outra parte, complementa o ensaísta: “só
percebemos que visitou, num frêmito, o corpo do texto, quando já foi embora; o
vestígio de sua passagem é o poema”.
Ora, no debruçar-se sobre o mundo, por meio da escrita
poética, Luís Pimentel faz, senão de todos, porém, de muitos de seus poemas, o
espaço privilegiado daquela “passagem” na qual se cristalizam os vestígios
poéticos, para deslindar as coisas do mundo sob o prisma especial de um olhar
que o elastece na percepção sensível e na fantasia criadora do leitor.
O mesmo despojamento que valida uma atitude estética,
imbricada, por sua vez, no fundo moral de suas ideias e de suas emoções,
alarga-se no poema que dá título ao livro, todo marcado por um sentimento, não
diria cético, mas colado à crosta da vida, da vida como ela é, à parte
quaisquer ideais, utopias ou redenções.
“Não sou de mendigar dias melhores.
Basta o dia feito de dias que amanhecem,
das horas que somam e se repartem
em noites e mais noites sorrateiras.
Assim vou remoendo o que assim seja”,
afirma o eu lírico, para
concluir, mais adiante:
“Aprendi a juntar cacos e fiapos,
com eles remendar tardes puídas.
Resguardar-se dos afetos, abafar gemidos.
Esquecer dias não vividos.
Aprendi a não pedir outro destino”.
O poeta, assim, não escamoteia os pequenos desencontros
face ao real. Não se lamenta, nem se deixa levar, todavia, pelo travo ácido da
amargura. Não há ceticismo, não há pessimismo, não há dilaceramentos na
geografia semântica de seus versos. Por outro lado, não há ufanismos, não há
idealizações, não há retórica. Há como que um sábio e secreto conhecimento da
vida, pulsando nas vigas de cada palavra, no alicerce sólido de cada
pensamento.
A esta primeira parte, intitulada “Passageiros”, talvez
numa breve alusão à fugacidade de tudo, segue-se, pelo menos no meu entender, o
núcleo duro dessa poética, mais reflexiva que descritiva, enfeixado nos “Poemas
secos”, em cujo corpo germinam os nutrientes mórficos e sintáticos de um
lirismo telúrico, pontuado, a seu turno, por uma série de motivos rurais que o
poeta denomina de “12 dilemas”.
Aqui, o tom é mais seco, mais direto, mais contundente. O
estilo se faz mais econômico. É o verbo e o substantivo que comandam o leque de
operações expressivas em torno da paisagem rala, do clima inóspito e do
sofrimento humano.
As “personas” (mãe, pai e filho) traçam um percurso em
meio à desolação da paisagem, num ciclo de vivências que lembra muito o destino
informe e fatal das “vidas secas”, do mestre Graciliano Ramos. Vejo também
alguma coisa, talvez pelo nominalismo de certos versos de ritmo iterativo, de
João Cabral de Melo Neto, naquilo que ele consuma como “lição de coisas” e de
“poética do menos”.
Nada, no entanto, que impeça a força original de uma voz
poética que fala por si mesma, na sua plena maturidade e realização. Uma voz
poética que não foge ao desafio das palavras e que sabe recuperar, como poucos,
o ritmo desmedido e cadenciado do verso.
“Seco.
O talo seco.
O osso rasga a carne
seca.
Do peito seco só esguicha
os espinhos de macambira,
a salmoura da palma,
o suor do mandacaru”.
Inicia assim o eu poético sua áspera viagem, fundindo
linguagem e paisagem, forma e fundo, num complexo verbal, onde uma arguta
observação existencial e uma rara disposição cognitiva se associam aos
ingredientes emotivos, trazendo, ao compasso quase narrativo do poema,
referenciais e subjetivação, sem elidir, contudo, o primado indispensável da
função poética da linguagem. Função que, de fato, faz do poema o poema, na
medida em que regula e preside, em timbre dominante, o diálogo interno entre
todas as outras que exige o processo de comunicação estética.
“Fim”, a terceira e última parte, retoma, em certo
sentido, o viés metapoético da primeira, explorando, no andamento dos versos,
desta feita mais longos, um tom de despedida, de acabamento ou de plenitude.
Plenitude formal e estilística, mas também plenitude - é provável - nos ângulos
da visão de mundo. Uma visão que, lastreando as esferas ideativas de cada
texto, compactua com os sinais da vida, na sua naturalidade absurda, aceitando
seus desvios e traições, ao mesmo tempo em que parece não temer a morte e seus
signos indecifráveis. Por isto, quero crer, a incidência de versos como estes:
“Parto.
Não sei se na hora certa ou programada.
{...}
Partir
é perder o medo das apostas.
{...}
Parto
por mim e por ti que me cedeu a vez.
Parto com saudades do porvir
que não verei, que não terei, sequer senti.
Parto sem chorar, pois é assim.
E ao partir de ti, parto por mim.
Reparto essa hora, esse agora esse
Fim”.
Hildeberto Barbosa Filho
É poeta, crítico
literário e cronista, membro da Academia Paraibana de Letras, professor
universitário e autor de diversos livros, entre eles “Nem morrer é remédio”
(Poesia) e “Vou por aí” (Crônicas)
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